quarta-feira, 20 de maio de 2015

A Psicologia Hospitalar e o Hospital1

Psicologia Hospitalar

Mais que uma atuação determinada por uma localização, a "Psicologia hospitalar é o campo de entendimento e tratamento dos aspectos psicológicos em torno do adoecimento" – aquele que se "dá quando o sujeito humano, carregado de subjetividade , esbarra em um "real", de natureza patológica, denominado "doença"..."(Simonetti, 2004, p. 15).

É importante apontar o objeto da psicologia hospitalar e estabelecer que está relacionado aos aspectos psicológicos, e não às causas psicológicas.

Assim, fica estabelecido que "a psicologia hospitalar não trata apenas das doenças com causas psíquicas, classicamente denominadas "psicossomáticas", mas sim dos aspectos psicológicos de toda e qualquer doença", uma vez que é factível que "toda doença encontra-se repleta de subjetividade, e por isso pode se beneficiar do trabalho da psicologia hospitalar" (Simonetti, 2004, p. 15).

Embora o foco da psicologia hospitalar seja o aspecto psicológico em torno do adoecimento, é sensato aceitar que aspectos psicológicos não existem soltos. Entre tantas importantes características da psicologia hospitalar, uma delas, de extrema relevância é a de que "ela não estabelece uma meta ideal para o paciente alcançar, mas simplesmente aciona um processo de elaboração simbólica do adoecimento." (Simonetti, 2004, p. 19).

Vale citar a afirmativa: "curar sempre que possível, aliviar quase sempre, consolar sempre" (Simonetti, 2004, p. 21)4. A transmutação de "consolar" em "escutar" se aproxima consideravelmente da "filosofia da psicologia hospitalar, que então pode ser definida como psicologia da escuta, em oposição à filosofia da cura..." (Simonetti, 2004, p. 21).

Mesmo naqueles casos em que o paciente encontra-se impossibilitado de falar por razões orgânicas ou não, (...) ou pura resistência, ainda assim essa orientação do trabalho pela palavra é válida, já que existem muitos signos não- verbais com valor de palavra, como gestos, olhares, a escrita e mesmo o silêncio (Simonetti, 2004, p. 23).

Enfim, "a psicologia hospitalar vem se desenvolvendo no âmbito de um novo paradigna epistemológico que busca uma visão mais ampla do ser humano e privilegia a articulação entre diferentes formas de conhecimento" (Simonetti, 2004, p. 25-26). E, a consequência clínica mais importante dessa visão é a de que "em vez de doenças existem doentes" (Simonetti, 2004, p. 26 citando Perestrello, 1989).

Psicologia e Medicina: o possível diálogo

Psicologia, Psicologia Hospitalar e Medicina

Sendo a subjetividade o objetivo da Psicologia Hospitalar, a doença é um real do corpo no qual o homem esbarra. E, quando isso acontece toda a sua subjetividade é sacudida. De tal modo, a Psicologia Hospitalar está interessada em dar voz à subjetividade do paciente, restituindo-lhe seu lugar, de que a medicina, por vezes, lhe afasta. Uma característica importante da Psicologia Hospitalar é a de que ela não estabelece uma meta ideal a ser alcançada pelo paciente, mas simplesmente aciona um processo de elaboração simbólica do adoecimento. Para o autor, ela se propõe a ajudar o paciente a fazer a travessia da experiência do adoecimento, embora não diga onde vai dar essa travessia. O destino do sintoma e, por conseguinte, do adoecimento depende de muitas variáveis: do real biológico, do inconsciente e das circunstâncias. Logo, o Psicólogo Hospitalar participa dessa travessia como ouvinte privilegiado e não como guia. (Citando Moretto, Simonetti, 2004).

É certo que, na cena hospitalar, Medicina e Psicologia se aproximam significativamente, articulam-se, coexistem e tratam do mesmo paciente, no entanto, nunca se confundem, já que possuem objetos, métodos e propósitos marcadamente distintos. A filosofia da Medicina é curar doenças e salvar vidas. Já a filosofia da Psicologia Hospitalar é reposicionar o sujeito em relação à sua doença.

Citando Moreto, Simonetti (2004), refere, de modo bastante pertinente, que a Psicologia não está no Hospital para melhorar ou facilitar o trabalho da Medicina, embora isto possa ocorrer. A Psicologia Hospitalar jamais poderia funcionar a partir de uma filosofia de cura, especialmente porque se propõe a lidar também com situações em que a cura já não é mais provável, como no caso de doenças crônicas, assim como de doenças sem possibilidades terapêuticas. Vale ressaltar que no sentido médico de erradicação de doenças e eliminação de sintomas, a psicologia é pouco eficiente.

Assim, verdadeiramente, o Psicólogo pode fazer muito pouco em relação à doença em si, dado que este é o compo de trabalho do médico, mas pode fazer muito no âmbito da relação do paciente com seu sintoma: essa sim sendo uma das funções do Psicólogo inserido em um hospital geral.

Para Simonetti (2004), se a filosofia da Psicologia Hospitalar não se dá pela cura, também não se dá contra a cura. Trata-se de uma filosofia para além da cura, uma vez que suprimidos os sintomas e eliminadas as causas das doenças, ainda permanecem a angústia, os traumas, as desilusões, os medos, as consequências reais e imaginárias, ou seja, as marcas da doença. Logo, mesmo no trabalho bem sucedido de cura, muitas experiências ficam, resistem, tanto no curador como no doente. A Psicologia Hospitalar se propõe a tratar também dessas situações, dessas marcas, destas cicatrizes.

Embora tanto a Medicina quanto a Psicologia aceitem que a doença é um fenômeno bastante complexo, comportando várias dimensões, situá-las em termos de causas psíquicas versus causas orgânicas, ainda é uma característica do pensamento de parte dos médicos, uma armadilha para o Psicólogo, que de modo algum deve incorrer no erro epistemológico, uma vez que incontestavelmente o psíquico é orgânico e vice-versa.

De acordo com Simonetti (2004), a Psicologia Hospitalar embora enfatize a parte psíquica, não diz, e nem tão pouco sugere , que outra parte não exista ou seja importante. Ao contrário, perguntará sempre qual a reação psíquica diante da realidade orgânica, qual a posição do sujeito diante desse real da doença, e disso fará seu material de trabalho.Além disso, a Psicologia Hospitalar define como objeto de trabalho não somente a dor do paciente, mas também a angústia da família, a angústia, na maioria das vezes disfarçada da equipe, e a angústia muitas vezes negada dos médicos. De tal maneira, além de considerar essas pessoas individualmente a Psicologia Hospitalar também se ocupa das relações entre esses atores, o que a constitui como uma verdadeira psicologia de ligação, com a função de facilitar os relacionamentos entre pacientes, familiares e médicos. Não esquecendo-se, claro, da própria angústia e dor do Psicólogo neste teatro vivo do adoecimento e morte.

No terreno da subjetividade, é possível verificar que a relação entre a Psicologia e a Medicina é, por vezes, de uma contradição radical. Uma vez que a primeira faz da subjetividade seu foco principal, a segunda, muitas vezes, sem cerimônias, exclui a subjetividade de seu campo epistêmico de maneira, por vezes, uma suposta, porém equivocada, abordagem objetiva do adoecimento sem o viés de sentimentos ou desejos. De tal modo acaba, muitas vezes por negligenciar a subjetividade tanto do paciente como do próprio médico e equipe.

Simonetti (2004), refere que tal abordagem, tão "objetiva", sofre o mal de que o excluído na teoria, retorna, com toda a força, na prática da clínica médica. Citando Moreto o autor afirma que é possível assim, assistir, na relação concreta médico-paciente, uma verdadeira enxurrada de emoções, sentimentos, fantasias e desejos, - de ambos – que, por não terem amparo teórico, são negados e escamoteados, embora nem por isso deixem de existir e influir. Vale considerar que a postura médica, diferenciada da postura do Psicólogo Hospitalar, frente ao adoecimento subjetivo do paciente não deve ser tratada como uma escolha meramente comportamental, mas sim como uma construção histórica que, embora sensivelmente, e, com grande esforço, vem se modificando ao longo dos anos5.

Psicologia e Medicina: um paradoxo ou simplesmente dois paradigmas?

Inicialmente, a prática psicológica frente à prática médica pode constituir-se em um embate. Afinal, quando o discurso médico fracassa em sua pretensão epistemológica de banir a subjetividade, abrem-se então as portas do hospital para a psicologia entrar, adentrar e cuidar desta importante característica humana que revoluciona a "meta" médica, subvertem-na além de lançarem complexa perplexidade na cena hospitalar.

Para Simonetti (2004), a medicina quer esvaziar o paciente de subjetividade, e a psicologia se especializou em mergulhar nessa mesma subjetividade, crendo que "mais fácil do que secar o mar, é aprender a navegar..." (p. 22). Que é exatamente isto, ou seja, restabelecer as condições para a prática da medicina científica, o que a medicina espera da psicologia hospitalar, não resta dúvida. A questão é saber se essa é mesmo a melhor função da psicologia nessa empreitada hospitalar. Será o papel da Psicologia Hospitalar o de atuar como depositária de toda a subjetividade em torno do adoecimento, permitindo, com esse gesto, que a medicina continue a ignorar a subjetividade e a trabalhar com um corpo como se nele não estivesse embutido um sujeito? Ou caberia à Psicologia Hospitalar redirecionar, de forma cuidadosa e não acusativa e crítica, essa subjetividade de volta para medicina, auxiliando-a tanto a incluí-la quanto a compreender e com ela lidar, em sua filosofia?

Por outro lado, vale ressaltar que a especificidade de cada profissão é inquestionavelmente relevante, uma vez que dá condições ao profissional de se apropriar de modo mais profundo daquilo que lhe compete enquanto especialista, o que não justifica a desqualificação de um outro profissional. Ao contrário, a necessidade e portanto, aceitação do outro, pode lançar luz à possibilidade de uma ressignificação interessante, produtiva para ambos, em termos de qualidade e efetividade no atendimento daquele que adoece, e que portanto, sofre.

Outra questão importante na compreensão do "paradoxo" Medicina e Psicologia é a questão do destino "desejado" ao sintoma, ou seja, o que cada profissional faz, tenta, ou deseja fazer com o sintoma do paciente. Fácil supor que na medicina não há dúvidas: ela quer eliminá-lo, destruí-lo. Ora, e tem mesmo que proceder assim, não há como defender o contrário. Afinal, esta é a natureza da medicina: o tratamento e a cura. E, embora não se colocando no caminho com vistas a atrapalhar tal premissa a Psicologia Hospitalar atua de maneira notadamente diferenciada, uma vez que não tem como função a eliminação imediada de todo e qualquer sintoma, já que se interessa por escutar e compreender o que ele tem a dizer. Partindo de uma natureza inquestionavelmente diferenciada, para a Psicologia, todo sintoma, além de doer e fazer sofrer, traz em si uma dimensão de mensagem e comporta informações sobre a subjetividade de quem o possui. Existe no atuar da Psicologia Hospitalar a inalienável noção de que o sujeito fala por meio de seus sintomas, ou é falado por eles. Logo, a Psicologia se propõe a escutar, compreender e fazer com que todos o entendam: paciente, família e equipe de saúde. Eis a estratégia da Psicologia Hospitalar: tratar do adoecimento no registro do simbólico, uma vez que no registro do real a medicina já o faz brilhantemente e, notadamente, vem se esforçando para fazer, e fazendo, cada vez melhor.

Vale ressaltar que, mesmo nos casos em que o paciente se encontra impossibilitado de falar, por razões orgânicas, instrumentais ou emocionais, ainda assim, a orientação do trabalho pela palavra é bastante válida, já que não se pode e nem tão pouco se deve ignorar os signos não verbais com valor de palavra, tais como gestos, olhares, a escrita, até mesmo o valioso e expressivo silêncio.

De acordo com Simonetti (2004), o que interessa à Psicologia Hospitalar não é a doença em si, mas a relação que o doente tem com o seu sintoma, ou seja, o destino do sintoma, o que o paciente faz com sua doença e o significado que lhe confere.

A Psicologia Hospitalar vem se desenvolvendo no âmbito de um novo paradigma epistemológico que busca uma visão mais ampla do ser humano, e privilegia a clínica, uma visão mais holística em termos de perceber não tão somente doenças, mas sobretudo, a vivência existencial de pessoas que apresentam doenças.

Nessa direção a Psicologia é perfeitamente capaz de perceber que todo conhecimento é parcial e que jamais será possível alcançar a verdade total de objeto ou de objetivo algum. De tal modo, deve se propor a dialogar sempre com aquela que se ainda não, deverá, em uma questão de tempo, e para o bem dos doentes, aceitar e melhor compreender algumas das nuances da Psicologia Hospitalar, de modo a caminharem sempre como complementares e nunca como "combatentes". Um conhecimento nunca deve ter o propósito de anular ou mesmo desqualificar o outro, mas sobretudo, se legítimo, ético, moral, aliar-se a ele com vistas a um enriquecimento contínuo para ambos. Assim, se não é possível conhecer o todo da doença, ou do doente, já será de grande utilidade conhecer muitas de suas dimensões, aliando-se conhecimentos de diferentes áreas.

De tal modo, se capazes de por em prática tal premissa, ambos os profissionais, tanto da Psicologia Hospitalar quanto da Medicina terão chances mais profícuas de estabelecerem um diálogo verdadeiro e fomentarem em sua prática diária um trabalho mais eficaz e, por conseguinte mais efetivo para aquele que sofre.

Em termos de expectativas em relação ao exercício da Medicina, o que mais se deseja é a já tão falada humanização, no tocante a relação médico-paciente, à bioética, ao barateamento dos custos e sobretudo, ao acesso à saúde para todos, conforme seu direito já assegurado pela Constituição Brasileira. No entanto, isso somente será possível de fato, se houver a reflexão sobre o cientificismo radical, e da criação de conexões produtivas entre a ciência e outros campos do saber, como a espiritualidade, a política e a cultura em geral.

Outro aspecto relevante no contexto do trabalho em hospital é o diagnóstico, tanto em Medicina quanto em Psicologia. Para Simonetti (2004, p. 33), "diagnosticar é o instante de ver, seguido pelo tempo de entender que leva ao momento de intervir, não necessariamente nessa ordem, mas necessariamente interligados." Logo, a principal razão pela qual os diagnósticos são feitos é para facilitarem o tratamento, uma vez que diante de um diagnóstico bem feito a melhor estratégia terapêutica se evidencie, naturalmente, na mente do psicólogo bem treinado. Além obviamente de outras imprescindível razões como a pesquisa científica e, a comunicação e relacionamento entre os profissionais.

Segundo Simonetti (2004), "em medicina, diagnóstico é o conhecimento da doença por meio de seus sintomas, enquanto na psicologia hospitalar o diagnóstico é o conhecimento da situação existencial e subjetiva da pessoa adoentada em sua relação com a doença" (p. 33). Assim, na Psicologia Hospitalar não são diagnosticadas doenças, mas o a relação das pessoas com a doença apresentada. Desta maneira, o diagnóstico, ao contrário do que ocorre na Medicina, não necessariamente é expresso em termos de nomenclatura de doenças, mas por uma descrição abrangente dos processos que influenciam e que são influenciados pela doença vivida pelo paciente.

Tanto a Psicologia Hospitalar quanto a Medicina compreendem o diagnóstico como uma hipótese de trabalho e não como uma verdade absoluta. De tal modo, a Psicologia Hospitalar em seu cerne, trabalha com o sentido das coisas e não com a "verdade" delas (se tal existe!). E, assim também o faz a medicina, ainda que trabalhando com sua filosofia pragmática. Uma vez que são inúmeras as doenças de que não se consegue descobrir a etiologia, mas que por outro lado se consegue curá-las, e ainda lembrando-se de quantas doenças que ainda não são de conhecimento da Medicina, mas que existem e das quais padecem muitos seres humanos. A Medicina não se esgotou em termos de investigação e prática. Nem a Psicologia Hospitalar, embora estejam muito avançadas!

Enfim, a Medicina diagnostica e trata a doença da pessoa, enquanto a Psicologia Hospitalar diagnostica e trabalha com a pessoa, e sua relação com a doença apresentada. Desta forma pode-se entender que, de maneira alguma deverá se impor um hiato intransponível entre as duas ciências. Ao contrário, uma, incontestavelmente, complementará a outra como cada uma das asas de um pássaro: fundamentais, em seus esforços, para um bem sucedido vôo. Fazem parte de um só corpo, se interdependem, e não podem encontrar separação no objetivo a alcançar: o auxílio ao que sofre.

Referências
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1 .Monografia Apresentada ao Serviço de Psicologia Hospitalar da 28ª Enfermaria da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, como Requisito Parcial à Obtenção do Título de Pós Graduação em Psicologia Hospitalar e da Saúde. 
2 .Psicóloga e Pedagoga formada pela Universidade Católica de Brasília – UCB; Especialização em Teoria Psicanalítica pela Universidade de Brasília – UnB; Especialização em Psicologia Hospitalar e da Saúde pela Santa Casa da Misericórdia do RJ. 
3 .Doutora em Psicologia pela UFRJ; Coordenadora dos 22 Cursos de Pós-Graduação da Santa Casa da Misericórdia do RJ-CESANTA; Coordenadora do Curso de Pós Graduação em Psicologia Hospitalar e da saúde do CESANTA; Orientadora desta Monografia. 
4 .Aforismo hipocrático citado por Simonetti. 
5 .Na Grécia antiga havia dois tipos de médicos, os que cuidavam dos cidadãos gregos e os que cuidavam dos escravos. Como os escravos eram oriundos de outras nações e não falava o idioma grego, os médicos que deles cuidavam foram perdendo o hábito de conversar com os pacientes. Não adiantaria mesmo, e não sendo possível a comunicação, apenas os examinavam e medicavam. Já os médicos que cuidavam de seus compatriotas gregos, costumavam conversar muito com eles, e, como para conversar com pessoas doentes é preciso se inclinar um pouco sobre o leito, eles começaram a ser conhecidos como os médicos que se inclinavam, do grego inclinare, e disso nasceu o termo atual "clínica". O Psicólogo hospitalar é um clínico. Fonte: Simonetti (2004, p. 28).

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